VIANA DO CASTELO - Visão Esplendorosa a partir do Monte Santa Luzia


“É manhã clara, mas o viajante ainda não se levantou. É de propósito que atrasa o momento em que abrirá as duas janelas do quarto. Faz demorar o gosto com que está contando desde que, noite fechada, chegou ao hotel. Talvez receie, também, uma decepção, a luz entra pelas frinchas, coada e aqui se aperta o coração do viajante: Estará nevoeiro? Salta da cama indignado com a simples ideia da miserável desfeita que seria ver coberta de nevoeiro a paisagem de Santa Luzia, e num repente abre a primeira janela, a que dá para o mar, e fica iluminado de gosto e de pasmo diante do esplendor das águas, a costa brumosa, o encontro do rio e do oceano, o cordão de espuma das vagas que vêm do largo e se desfazem na praia. A outra janela faz ângulo reto com essa, o quarto é de esquina, vida e boa sina, há mais paisagem a espera. E para esta não vão chegar palavras, nem pinturas, nem música. Sobre o largo vale do Lima paira uma névoa luminosa que o sol faz reverberar por dentro como um esplendor. A água do rio, correndo, cinge as múltiplas ilhas e nessa margem direita, que melhor se distingue do alto, há braços líquidos que entram pela terra e refletem o céu, e campos verdes cortados por altas árvores ruivas e sebes escuras. Das chaminés das casas sobe o fumo matinal, e muito ao fundo, por essa vez contribuindo para a geral beleza da hora magnífica, fumegam em glória as chaminés das fábricas. O viajante tem muita sorte: duas janelas para o mundo e este momento de luz única, a frescura do ar que envolve o corpo. Em boa hora veio a Viana do Castelo, em boa hora chegou estando a noite fechada e resolveu subir ao Monte Santa Luzia para dormir”
(JOSE SARAMAGO in Viagem a Portugal, pag. 91).

 

Não chegamos a Viana do Castelo com a noite fechada, mas nossa sorte não foi diferente da de Saramago. A manhã estava clara quando subimos o Monte Santa Luzia em busca da pousada de mesmo nome, que havia reservado por internet, meses antes. Não foi exatamente por acaso que escolhemos aquele hotel. Já havíamos pensado em ir a Viana do Castelo, pois coincidentemente, dias antes de fazer a reserva, havia lido reportagem sobre um projeto recente de Eduardo Souto Moura na revista AU (Arquitetura e Urbanismo). O projeto me despertou a vontade de conhecer o edifício “in loco”, mas mais do que isso, ao lado dele havia um edifício magistral e premiado de Álvaro Siza, a Biblioteca Municipal de Viana do Castelo. E haviam, surpreendentemente, outros bons projetos de arquitetura naquela pequena cidade. Mas mais do que isso, pelas fotos da revista podia se ver algumas casinhas de uma encantadora cidade à beira de um rio luminoso.

 

Chegar à decisão de reservamos a Pousada do Monte Santa Luzia para a noite do nosso aniversário de casamento foi então, em parte, consequência disso. Mas também nos encantou vermos juntos as fotos da paisagem maravilhosa que se descortinava das janelas da pousada. Na hora concluímos, esse lugar era especial. E o preço da diária, apesar de não ser exatamente barato para os padrões portugueses, parecia valer muito a pena.

 

Assim, quando finalmente achamos a estrada que levava ao Monte Santa Luzia nossas expectativas começaram a se confirmar. Na subida do Monte, a cada curva se descortinava para nós uma paisagem mais bela da cidade situada na foz do rio Lima, cujo significado histórico para Portugal e emocional para aquela viagem ainda estávamos por conhecer.

 

Antes da chegada a Pousada passamos em frente da Basílica de Santa Luzia, uma igreja de planta em formato de cruz, estilo neoclássico, que mistura neorromântico, neogótico e bizantino, construída entre 1903 e 1925, inspirada na Basílica de Sacré Coeur de Paris. Apesar de ser um exemplar neoclássico, a Basílica tem uma beleza imponente, realçada pela sua localização no alto do Monte. Mais do que a sua beleza é deslumbrante a vista que se tem do seu pátio externo. E mais fantástica ainda a vista que se tem da região em dias claros , do seu zimbório, parte mais alta da cúpula.

 

Aquela manhã do dia 26/09/13 era, para sorte nossa, um dia claro em uma data de chuva e névoa previsíveis. Quando chegamos no lobby do hotel, fomos logo recebidos por um funcionário que levou nossas malas, a moda dos hotéis clássicos. Nosso quarto, embora não fosse uma suíte especial com varandinha, estava voltado para o lado do rio, um privilégio que possivelmente o acaso (ou a sincronicidade divina) reservou para nós. Quando, ao nos instalarmos no nosso quarto, abrimos a nossa janela, a vista maravilhosa nos iluminou de “gosto e pasmo” como a Saramago e não precisamos esperar uma noite para desfrutá-la.

 

PS – No centro de Viana do Castelo encontramos o Café Caravelas no qual as paredes são ilustradas por trechos do conto de Saramago “Conto da Ilha Desconhecida”. Consta que esse texto foi escrito em Viana do Castelo. Saramago inspira-se em Fernando Pessoa ("Para viajar, basta existir") para criar quase uma fábula para descrever metaforicamente como a ficção pode levar o leitor a lugares desconhecidos. O homem que deseja ir por mares não navegados, mesmo que eles já não existam, só encontra uma parceira a embarcar no seu sonho e com ela vai buscar aquilo que só eles sabem existir e desejam encontrar – a si mesmos.

 

“(...) Desde que a viagem à ilha desconhecida começou que não se vê o homem do leme comer, deve ser porque está a sonhar, apenas a sonhar, e se no sonho lhe apetecesse um pedaço de pão ou uma maçã, seria um puro invento, nada mais. As raízes das árvores já estão penetrando no cavername, não tarda que estas velas içadas deixem de ser precisas, bastará que o vento sopre nas copas e vá encaminhando a caravela ao seu destino. É uma floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la. Então o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mão, e foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que não se sabe se este é o de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal o sol acabou de nascer, o homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ainda faltava dar à caravela. Pela hora do meio-dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma” (
JOSE SARAMAGO in “Conto da Ilha Desconhecida”)

 

Textos e fotos: Sérgio Ulisses Jatobá com exceção dos trechos em itálico com a fonte citada. Os textos de Saramago foram sugeridos por Divina Jatobá, quem primeiro percebeu as relações dos lugares que visitamos com as obras "Viagem a Portugal" e "Conto da Ilha Desconhecida", citadas nesse post.

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